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quinta-feira, maio 10, 2007

O POTENCIAL DA PARTICIPAÇÃO OUTORGADA

Aproposta de governar com participação nos devolve a seguinte interrogação: participação em quê? A redundância da pergunta, a obviedade da resposta, não nos exime de registrá-las, pois, durante e após a ditadura, no afã de popularizar o tema “participação”, este foi, em alguns casos, banalizado. Resta-nos afirmar: a participação que se propõe significa abrir à população a possibilidade de, se assim o desejar, agir em conjunto com o governo em alguns atos que seriam privativos dessa instância de gestão dos negócios públicos. Uma interessante reflexão sobre isto nos foi deixada por Betinho1.

A menção da palavra governo remete ao Estado, com o qual não se confunde, sem o qual, todavia, não existe. O Estado define a gerência da sociedade, faz a correlação dos anseios e conflitos dos seus setores, constrói uma perspectiva de ação no interesse geral da nação, estabelece os negócios públicos em seus macro-campos; tem permanência prolongada no tempo. O governo faz a gestão cotidiana dos negócios públicos e tem menor permanência no tempo.

O Estado, portanto, expressa a sociedade, seu interesse geral, todavia não o faz de modo absoluto. A expressão da sociedade pelo Estado se dá no limite dos conflitos e do encontro de interesses das suas classes, seus grupos e demais clivagens verticais e horizontais do todo social. Se há evidência de que o pacto de co-existência dos grupos, a busca da não extinção da sociedade em luta total, constrói historicamente o Estado, também fica evidente que as classes e grupos melhor posicionados orientam a ação estatal2. Em que pese a evolução das relações Estado/sociedade durante o século XX, o núcleo da decisão estatal continua sendo o de constituir a base produtiva da sociedade, o que, numa sociedade capitalista, significa fortalecer a relação social básica, ou seja, o capital.

Assim, participação nos atos de governo significa, na sociedade atual, participar da política do Estado que fortalece o capital. Entretanto3, o conflito social ocorre e se desenvolve de forma sinuosa, havendo momentos em que o poder das classes se equivale e o Estado se torna um corpo acéfalo, sem conteúdo de classe definido, uma superestrutura em disputa. Mas a disputa se dá também no cotidiano, ela é permanente4.

É próprio do humano o ato de participar. Participa-se na família, na igreja, no grupo de amigos, no clube, na empresa... Também é próprio do humano o ato de dominar e ser dominado. O primeiro impulso conduz à autonomia5, o segundo à heteronomia6.

Como tudo na natureza e na sociedade, autonomia e heteronomia não ocorrem de forma pura, todo o tempo. O mais comum é que ocorram em concomitância e estabeleçam interfaces, construindo momentos mais ou menos autônomos, momentos mais ou menos heterônomos.

Se o Estado é o campo da dominação política e o governo é a expressão político-administrativa do Estado, a forma de participação autônoma é a apresentação de listas de reivindicações e exigências da cidadania ao governo, ou mesmo a supressão deste e a constituição de outro. Desde o abaixo-assinado dos moradores de uma rua até as grandes mobilizações nacionais de caráter reivindicatório ou de caráter contestatório podem ser vistos como formas autônomas de participação7.

É na ação autônoma, no ato autônomo de participar, que as subjetividades individuais se relacionam e produzem intersubjetividade. A classe não existe previamente aos indivíduos que a compõem, mas é concomitante. A participação dos indivíduos em atos coletivos de reivindicação perante o Estado constrói a subjetividade de cada indivíduo ao mesmo tempo que a intersubjetividade, que pode expressar-se como consciência de classe.

O Estado domina, mas não domina sempre do mesmo modo. Ele pode usar processos autoritários e processos democráticos de dominação. Quando o agente estatal é imbuído da liberdade como referencial e busca permanente, seu papel de educador da sociedade vai se expressar na ampliação de mecanismos democráticos de governança.

Nestes casos, o governo poderá abrir mão de alguns mecanismos político-administrativos e entregá-los à gestão direta da população. A ação heterônoma associa-se à ação autônoma, em favor desta última. É aí que o conceito de participação outorgada é solicitado a comparecer no cenário de esclarecimento da ação.

O agente estatal não pode equivocar-se quanto ao conteúdo do seu ato de abrir mão de algumas prerrogativas em favor da cidadania. Se a lei que condensa a vontade geral define que tais ou quais ações são da alçada do poder executivo, a mera abstenção por parte do governo de exercer tais ou quais ações, transferindo-as para o âmbito da decisão popular, não as transforma em ações autônomas. Neste sentido, os mecanismos participativos não são participação autônoma, mas participação outorgada.

Não há voluntarismo na governação, o agente estatal não pode definir a autonomização do ato governativo pelo simples ato de transferi-lo ao povo. Isto não quer dizer que a outorga de parcela do poder não tenha valor na produção da autonomia. Trata-se, sim, de compreender a outorga e como se pode potencializar o seu uso por parte da população, gerando consciência e experiência da decisão governativa e do exercício do poder de governar.

A educação popular como educação para o exercício da autonomia política tem que considerar a outorga como oportunidade de formação de quadros populares para a encampação de tarefas do governo. Não se pode ser ingênuo de pensar que participação outorgada é participação autônoma. Todavia, também não se pode deixar de reconhecer que a outorga de parcela de poder ao povo lhe devolve a possibilidade de, através dos mecanismos participativos, construir consciência crítica perante o processo político-administrativo.

1 SOUZA, Herbert de. Participação.
http://www.mre.gov.br/CDBRASIL/ITAMARATY/WEB/port/polsoc/partic/apresent/apresent.htm. Acesso em 09.05.2007.
2 O que leva Marx a afirmar que o Estado é o Comitê Central da burguesia.
3 Como diz Engels em “Anti-Dhuring”.
4 O que leva Lênin a definir a postura revolucionária frente ao Estado e Gramsci a propor a disputa da hegemonia.
5
http://pt.wikipedia.org/wiki/Autonomia, acesso em 09.05.07.
6
http://pt.wikipedia.org/wiki/Heteronomia, acesso em 09.05.07.

7 Em que pese haver casos em que agentes externos insuflam, financiam ou estimulam tais eventos, transformando-se de eventos autônomos em heterônomos.

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